Os Amantes de Novembro

Ruas e ruas dos amantes
Sem um quarto para o amor
Amantes são sempre extravagantes
E ao frio também faz calor


Pobres amantes escorraçados
Dum tempo sem amor nenhum
Coitados tão engalfinhados
Que sendo dois parecem um


De pé imóveis transportados
Como uma estátua erguida num
Jardim votado ao abandono
De amor juncado e de outono.

O Beijo

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.


Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?


É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.


E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Mesa dos Sonhos

Ao lado do homem vou crescendo


Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente


Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas


Ao lado do homem vou crescendo


E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida

A Morte, esse Lugar-Comum

É trivial a morte e há muito se sabe
fazer - e muito a tempo! - o trivial.
Se não fui eu quem veio no jornal,
foi uma tosse a menos na cidade...


A caminho do verme, uma beldade
— não dirias assim, Gomes Leal? —
vai ser coberta pela mesma cal
que tapa a mais intensa fealdade.


Um crocitar de corvo fica bem
neste anúncio de morte para alguém
que não vê n'alheia sorte a própria sorte...


Mas por que não dizer, com maior nojo,
que um menino saiu do imenso bojo
de sua mãe, para esperar a morte?...

Bom e Expressivo

Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.


Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,


tal como o outro pedia
se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: — Não é poesia!,


diz-lhe que não, que não é,
que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pe-


dra que rola na pedra...
Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,


a não ser a de cada um,
com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo...

E de Novo, Lisboa...

E de novo, Lisboa, te remancho,
numa deriva de quem tudo olha
de viés: esvaído, o boi no gancho,
ou o outro vermelho que te molha.


Sangue na serradura ou na calçada,
que mais faz se é de homem ou de boi?
O sangue é sempre uma papoila errada,
cerceado do coração que foi.


Groselha, na esplanada, bebe a velha,
e um cartaz, da parede, nos convida
a dar o sangue. Franzo a sobrancelha:
dizem que o sangue é vida; mas que vida?


Que fazemos, Lisboa, os dois, aqui,
na terra onde nasceste e eu nasci?

Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!


"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!


"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.


"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!

Em Todo o Caso

Remancha, poeta,
Remancha e desmancha
O teu belo plano
De escrever p'la certa.
Não há "p'la certa", poeta!


Mas em todo o caso acerta
Nem que seja a um verso por ano...

O Amor é Amor

O amor é o amor - e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...


O meu peito contra o teu peito
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!


Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!


O amor é o amor - e depois?

De Porta em Porta

- Quem? O infinito?
Diz-lhe que entre.
Faz bem ao infinito
estar entre gente.


- Uma esmola? Coxeia?
Ao que ele chegou!
Podes dar-lhe a bengala
que era do avô.


- Dinheiro? Isso não!
Já sei, pobrezinho,
que em vez de pão
ia comprar vinho...


- Teima? Que topete!
Quem se julga ele
se um tigre acabou
nesta sala em tapete?


- Para ir ver a mãe?
Essa é muito forte!
Ele não tem mãe
e não é do Norte...


- Vitima de quê?
O dito está dito.
Se não tinha estofo
quem o mandou ser
infinito?

Retrato

O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) duas maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer
xxxxxMas sofre de ternura, bebe de mais ri-se
xxxxxdo que neste soneto sobre si mesmo disse...

já não é hoje?
não é aquioje?


já foi ontem
será amanhã?


já quandonde foi?
quandonde será?


eu queria um jàzinho que fosse
aquijá
tuoje aquijá.

Gentlemen Meeting

flocos de amabilidade desprendem-se das acolhidas
com que estes homens que ao pegarem-se parecem lutadores
num enlevo recíproco se afrontam
por sorriso meio-abraço palmadinha
e em número e categoria bem proporcionados
à importância da efeméride que ali os ajuntou
para repetentes jubilosos celebrarem
a feliz quase formosa circunstância
de estarem todos vivos da costa
descontadas as baixas do costume
e prontos a ganhar diuturnamente
direito a outras ritualizadas acolhidas
onde libertarão novos flocos de amabilidade.

Toma Toma Toma

Ainda prefiro os bonecos de cahcaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.


O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.


Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.


Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.


Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.

Lego

Está tudo conformado
ao triste proprietário.
Mecânicas ovelhas,
na erva de plástico,
têm pastor de pilhas
e cão pré-fabricado.
Flores marginam esse
às peças-soltas prado.
Eléctricas abelhas,
obreiras sem contrato,
daquele herbário extraem
um mel supermercado.
A malhada, no estábulo,
quase manga de alpaca
(é A VACA, sabias?),
dá leite engarrafado.
No céu (para colorir)
a nuvem, pontual,
aguarda a vez de ser
chovida no nabal,
enquanto o Sol dardeja
na eira proverbial.
Já tudo afeiçoado
ao bom do proprietário
(ervas, bichos, moral),
ele conta com os seus
e espera sempre em Deus.


("- Deste corda ao pardal?"").

Flor em Livro Dormida

(J. C. de Melo Neto)
1983


Fechado, espalmado num missal é que eu me vejo,
como peça de herbário dum comércio amoroso
que há um século se travou entre Dom Brotoejo
e Dona Amélia Joana Cisneiros Monterroso.


Antepassados meus? Qual quê! Antepassados nossos,
que ao santo sacrifício levavam floretas,
trocavam os missais (Deus meu!, hoje são ossos...)
olhos nos olhos (... ossos nos ossos das comuns valetas?)


Mais que a letra, é o espírito que no livro procuro,
mesmo que seja só o levante da carne
duns pobres queridos que tranformavam tudo
- missa, missal, flor - em mensagens e secreto alarde!


Consumidores de livros, se quiserdes salvar
vossas almas-lombadas de bárbaros prosaicos,
tereis que, furtivos, procurar, folhear
uns quantos alfarrábios e, neles, encontrar
o herbário-mensagem dos amantes heróicos!